Page 105 - Da Terra
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FESTA DOS PÃES SEM FERMENTO LIVRO DE ASSENTOS
Escapámos da servidão sem ver o pão crescer. Ansiávamos por ser livres e par mos, nem prazo vemos para Que fique lavrado em acta: só acreditarei num mundo em que toda a gente caminhe nua sem sen r qualquer
dizer adeus ao mal que nos fora feito. Apartados passo a passo, lentamente, da levedura com que erguemos espécie de vergonha. Não gosto de fardas, prefiro o som despido do vento nas velas de um moinho ou os
pirâmides no forno da terra, em certo sen do fomos o fermento dos nossos senhores, escravos de carga com rapazes a tocar búzios na apanha da azeitona e a gente a cantar: à entrada d'Elvas achei um dedal, à entrada
pedregulhos de Aswan carregados aos ombros. Curvados andámos durante séculos, esturrando ao sol as d'Elvas achei um dedal. Cavo à enxada os versos e saem-me prosas. E ó despois, se me vêm fazer mal por causa
chagas abertas pelos chicotes dos ranos. Nada mais nos restava senão fugir, agarrados uns aos outros pela da trovoada? Que mão tenho eu no céu? Ó san ssimo sacramento, ai que repulsa, ai que pulsa, a ro palavras
corrente da fé. Assim nos libertámos de uma prisão para noutra nos encarcerarmos. Neste maldito mar para a amassadeira e deixo o estro a levedar, estou disposta a tudo, isto é, estou disposta a fazer tudo cer nho,
andámos à deriva até aqui encalharem os nossos sonhos, rodeados de muros altos como animais selvagens tal como manda a lei, se me apresentarem quem marche a 13 cen metros de altura com a elegância de uma
num zoológico de homens, mulheres e crianças. Minha mãe chegou transportada nos alforges de um burro. lesma. Ai, ai, de onde me saem os pensamentos? Estas ideias? Que digo eu, que digo eu? Da primeira ninguém
Eu e meus irmãos somos filhos de refugiados, esta é a história do povo eleito. Deus quis assim. Vem no se livra, da segunda é quem não quer, já dizia o poeta e eu fiz uma dieta, é certo, é verdade, à base de vinho
segundo livro das nossas memórias. Desde então, nosso Pai ordenou que pela Páscoa nos alimentássemos branco e pão de sementes com queijo da serra. Gosto de puxar a coalhada por riba, dou graças ao Senhor por
com pão ázimo em memória dos tormentos padecidos. Lembramo-nos do que passámos esquecendo-nos cada grama de celulite, a solidariedade é valor sem cotação. Jamais, jamais. Bem ma lembra quando andava
de quem somos por não querermos saber de onde viemos. Uma boca não pede o que lhe é dado, disse o atrás da procissão para comer pão, era tão magrita. Ai que prazer é ver a gordura a ganhar forma de gordura. Até
poeta. Por Deus foi dada a liberdade que os homens roubam. Foram tantas as privações e tão profunda a os ossos lampejam, ó virgem. Santo deus, arreda, arreda satanás, que eu nunca fui à escola e só vejo do olho
aflição, eram durações sem luz e pela treva seguimos por carreiros de cabras como rebanhos extraviados. esquerdo, esplendorosamente estendido sobre as rugas como se fosse uma criança acabada de adormecer.
Oprimidos, pelo deserto nos encaminhou Moisés até ao lugar de Canaã. A nado chegámos à ilha de Lesbos,
agora aqui estamos sem ter para onde ir. Encalhados na surdez da Europa, os gritos da nossa fome retumbam
mudos na indiferença de quem nos viu par r sem ter onde chegar. Há anos que ouvimos mal. Não é bem não
MIREM, TENHO UNS VERSOS
ouvir, é não perceber. Nós ouvimos, mas não percebemos a palavra. Eis a história do nosso êxodo.
PARA LHOS CONTAR:
O vento engravida as pedras, das pedras solta-se um rastro.
Este amor que no escuro traz de volta o texto com que aprendo
a respirar é alguém que de longe grita per grazie ricevute.
Meu irmão fez a morte dele, eu não levo nada do que tenho.
Só o que cá deixo, a vida inteira moldada pelo cincho do trabalho.
Tal como um queijo.
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